quinta-feira, 11 de março de 2010

O FUTURO DO CHURRASCO

PEDRO FELÍCIO
MÉDICO VETERINÁRIO E PROFESSOR DA UNICAMP






“Vai ocorrer uma redução de consumo de carne bovina, tendência já constatada há alguns anos nos EUA e na Austrália, mas não relacionada à saúde, e sim a preços”

“A raça Nelore está para o Brasil mais ou menos como a raça Angus está para os Estados Unidos”

“Nos EUA e no Canadá há muito investimento em P&D de carnes, porque eles sabem que o futuro do setor depende do progresso científico e tecnológico”


 





Mestre em genética animal e Ph.D. em produtos de origem animal, o professor Pedro Eduardo De Felício, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, é um dos mais conceituados especialistas em carne bovina do país, além de um bom garfo. “De vez em quando bate aquela vontade de comer carne assada, sentir o aroma da gordura gotejando nas brasas”, diz ele.
    Nesta entrevista à Síntese Agropecuária, Felício analisa as perspectivas da pecuária brasileira e as tendências do mercado, diante das ameaças de queda no consumo de carne bovina, por conta de sua associação a doenças cardiovasculares, câncer e obesidade.
“A receita é moderar o consumo”, recomenda o professor, prevendo vida longa para a carne vermelha.
    “A longo prazo, os preços da carne bovina tenderão a limitar seu consumo a ocasiões especiais, mas as churrascarias continuarão existindo e ainda terão uma grande expansão no mundo, porque de vez em quando sentimos uma necessidade ancestral de aroma e sabor de carne assada, que deve estar no cérebro humano desde a descoberta do fogo há pelo menos um milhão de anos”.

Síntese Agropecuária - Fala-se muito em redução do consumo de carne bovina, associando-se o alimento a doenças como obesidade e problemas cardiovasculares. As churrascarias, porém, continuam lotadas.
Pedro Eduardo de Felício –
Vai ocorrer uma redução de consumo de carne bovina, tendência já constatada há alguns anos nos EUA e na Austrália, mas não relacionada à saúde, e sim a preços ao consumidor relativamente a outras carnes. Também vai ficando complicado preparar carne bovina na cozinha de casa, ou melhor, do apartamento. As carnes de aves e a suína são mais viáveis para cocção rápida e são muito mais industrializáveis. Podem-se comprar produtos processados para aquecer e servir, enquanto a carne bovina não oferece muitas opções.

S.A. – Mas a carne bovina continua sendo a preferida do consumidor.
P.E.F -
De vez em quando bate aquela vontade de comer carne assada, sentir o aroma da gordura gotejando nas brasas, então quem pode vai à churrascaria, quem não pode assa uma carne no quintal ou na laje. Não tenho estatísticas sobre quanta carne é utilizada nas churrascarias, mas suponho que seja proporcional ao número de famílias de maior renda e, também de motoristas de ônibus e de caminhão, e funcionários e executivos de empresas que podem se ressarcir suas despesas com alimentação. Deve ser uma quantidade bem menor da que é consumida em outros tipos de restaurantes e lanchonetes e, também, nos lares. E são poucos os cortes utilizados no espeto corrido. Basicamente, do boi, a alcatra com picanha e maminha, só picanha, só maminha, cupim, fraldinha, costela e, vez por outra, um contrafilé. O consumo de carne será do meu ponto de vista fundamental no combate à epidemia de excesso de peso. Penso que as nutricionistas ainda estão receosas de expor isto publicamente, mas a Dra. Silvia Cozzolino, da USP, recomenda arroz com feijão, bife, ovo, verduras e legumes. A carne magra, obviamente, é o que chamamos de alimento denso em nutrientes essenciais ao organismo humano e pobre em calorias, a ser complementado com frutas e verduras diversas e carboidratos ricos em fibras.

S.A – O consumo da carne bovina está cada vez mais associado a câncer e doenças cardiovasculares.
P.E.F -
Quanto ao câncer e as doenças cardiovasculares, todos concordam que são de múltiplas causas, cujo combate dependerá de grandes mudanças de estilo de vida das pessoas. É claro que a longevidade deixa às pessoas mais sujeitas a doenças crônicas e degenerativas, e uma porção de outros fatores que ainda não se sabe direito quais são. O churrasco, por exemplo, tem o problema dos compostos HPAs (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos), benzopireno e benzantraceno, potenciais carcinogênicos presentes na fumaça. Quanto mais gordura tem a carne, e mais perto do carvão em brasa é colocada, maior é o risco.  Em algumas regiões do país a carne do churrasco é muito salgada, o que acaba por acarretar hipertensão arterial. No início deste ano saiu um estudo na “American Journal of Clinical Nutrition”, conduzido no Japão durante 10 anos, abrangendo 90 mil pessoas, número que foi reduzido a cerca de 70 mil depois dos testes de consistência dos dados. O consumo de sal foi significantemente relacionado a mortes por doenças cardiovasculares, não a câncer. O consumo de peixes salgados causou aumento nas mortes por câncer de estômago, atribuídas não ao sal, mas às nitrosaminas, já que esses peixes continham nitrato e nitrito. As nitrosaminas são compostos potencialmente carcinogênicos.

S.A.- O jeito então é esquecer o rodízio e o churrasco do fim-de-semana.
P.E.F -
Apesar das evidências médicas de envolvimento das carnes vermelhas no câncer do cólon intestinal, algum dia se comprovará que o problema poderá ser minimizado com moderação de consumo. Aliás, já existe recomendação da “American Institute for Câncer Research”, para que a ingestão seja limitada a 500 gramas de carnes vermelhas (pós-cocção) por semana, e embutidos em geral somente em ocasiões especiais. E, claro, associar esse consumo de carne com uma variedade de outros alimentos vegetais e exercícios físicos. Isto pode mudar no futuro, mas hoje é assim. Apesar de ser um especialista em carnes, não acho que as pessoas devam consumir grandes quantidades desse alimento, mas sim que todos tenham acesso e possam comer carne em quantidades suficientes para suas necessidades orgânicas. Tenho insistido nisso nos cursos que dou a estudantes, zootecnistas e pecuaristas, porque eles se dedicam à área com muito afinco, e para provar seu objetivo de fazer aumentar o consumo de carne, e a maioria tem isto como bandeira,  acabam consumindo toda a carne que conseguem ingerir.

S.A. - A tendência, portanto, é de uma redução do consumo
P.E.F-
A longo prazo, os preços da carne bovina tenderão a limitar seu consumo a ocasiões especiais, mas as churrascarias continuarão existindo e ainda terão uma grande expansão no mundo, porque de vez em quando sentimos uma necessidade ancestral de aroma e sabor de carne assada, que deve estar no cérebro humano desde a descoberta do fogo há pelo menos um milhão de anos.

S.A - O que o Brasil deve fazer para ampliar a exportação de carne bovina?
P.E.F -
Eu entendo que muito tem sido feito no marketing da carne brasileira pelas empresas e pela ABIEC [Associação Brasilieira das Indústrias Exportadoras de Carne Bovina]. Mais importante do que isso é o parque industrial nacional de ótimo nível técnico, o que ajuda muito. As questões sanitárias também caminham muito bem, então, é só ter paciência para acertar de uma vez por todas a rastreabilidade, que já tem oito anos de idas e vindas. Enquanto isso será preciso muita habilidade para neutralizar junto à União Europeia a influência do sindicato dos fazendeiros irlandeses, cuja liderança faz política interna mostrando-se capaz de, nas palavras que foram empregadas, deixar a carne do Brasil fora dos displays dos supermercados europeus.

S.A. - O Brasil já ganhou a guerra contra a febre aftosa?
P.E.F -
Nós não podemos relaxar com relação à febre aftosa. O que se pode dizer é que aprendemos a lidar com a doença de maneira preventiva. Vírus como o dessa doença fica só esperando uma descontração das autoridades sanitárias, um momento de euforia, como foi aquele de setembro de 2000, quando ocorreram os focos da doença no Rio Grande do Sul enquanto em Belo Horizonte acontecia o Congresso Mundial da Carne. Um fiasco. Por isso é melhor ser realista, eu sempre achei um excesso até mesmo os jantares e festinhas que os brasileiros gostam de promover em Paris para comemorar decisões de considerar essa ou aquela zona livre com vacinação. Eu imagino que o governo federal esteja fazendo mais do que está aparecendo, para considerar a região Sudeste livre sem vacina, como é o caso do Estado de Santa Catarina. Penso que começar pelo Rio Grande do Sul foi um erro devido aos seus limites geográficos, mas o Sudeste pode ser uma boa alternativa. Com a palavra os epidemiologistas e virologistas.

S.A. - É possível melhorar a qualidade da carne do Nelore? Como fazer?
P.E.F -
A qualidade da carne de gado tropical brasileiro passa por um programa nacional que reconheça que a raça Nelore é hegemônica no país e que a partir dela pode-se iniciar um programa de qualidade de grandes proporções. Os criadores, liderados pela Associação de Nelore do Brasil, entenderam perfeitamente isso, quando criaram o Programa de Qualidade Nelore Natural, mas a indústria não percebeu o quanto ganharia no processo, a longo prazo, é claro. Se a indústria tivesse compreendido que a partir do momento que puder anunciar carne de Nelore, praticamente orgânica, ou melhor dizendo natural, o produto nacional será valorizado. Isto que propusemos ao Carlos Viacava, um pecuarista de elite com uma percepção de mercado e uma visão de negócios que pouca gente tem igual. Penso que ainda está em tempo de uma união dos empresários em torno da idéia. Boi branco não é problema como alguns dizem, com a tecnologia certa de abate e frigorificação, boi branco é solução.

S.A. - Como o Brasil poderia aproveitar melhor a imagem do boi verde, criado à pasto?
P.E.F -
Eu preferiria trabalhar a imagem do boi natural, produzido a pasto, sem nunca receber um medicamento que não seja anti-helmíntico ou vacina. Daí a importância da marca Nelore Natural, coisa que seria mais complicado de fazer com a marca “boi verde”, que já é registrada por empresa do ramo de nutrição animal. Nelore Natural é marca do pecuarista criador da raça Nelore, administrada pela Associação de Criadores de Nelore do Brasil. E não teria qualquer problema de ciúmes tão freqüentes entre nós com relação a ser Nelore, e não a raça X ou Y. Todo pecuarista reconhece que o gado do Brasil é Nelore ou cruzamento com Nelore. Claro que há criadores de outras raças zebuínas e de Angus, Simental, Limousin, Canchim, Montana, Brangus, Braford, etc., mas são pessoas esclarecidas que já foram ou ainda serão criadores de Nelore. A Nelore funcionaria como o abre-alas. A marca está para o Brasil mais ou menos como a raça Angus está para os Estados Unidos. Na seqüência viriam marcas com menores volumes de produção, como aquelas de grande massa muscular com pouco acabamento, para atender mercados que costumam comprar carne magra, cortes “red” ou vermelhos como dizem. E aí você teria aquelas com predominância de genética britânica, com mais acabamento, um pouco mais de gordura entremeada na carne, que geralmente é mais macia, saborosa e suculenta.
Sou adepto de um trabalho de valorização da carne de gado produzido a pasto com suplementações específicas para seca e para águas, novilhas e machos castrados abatidos com até 36 meses. Aí tem um enorme trabalho a ser feito em termos de boas práticas de produção agropecuária e, também, de boas práticas de manejo pré-abate, abate, resfriamento, desossa, estocagem, expedição e comercialização. Em todas essas etapas do processo existe o risco de entrar uma matéria prima boa e sair um produto ruim, mas jamais acontece de entrar uma matéria prima ruim e sair um produto bom. Então é preciso cuidar do processo e dar um destino diferente para matéria prima ruim. Temos que insistir em que há muito para melhorar, porque está difícil até para fazer pesquisa nessa área no Brasil. Têm profissionais do governo que nos negam financiamento para estudos por acreditarem que carne é isso mesmo que está aí e que está bom demais. Enquanto isto, nos Estados Unidos e Canadá, por exemplo, há muito investimento em P&D de carnes. Eles sabem que o futuro do setor depende das inovações e do progresso científico e tecnológico.

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